Mais do que encher as crianças de presentes e de balas, poderíamos
aproveitar esse dia para uma reflexão profunda do lugar que a criança ocupa em
nossa sociedade. Precisamos urgentemente promover a abolição da escravatura
da criança.
Explico. A criança não tem voz, não tem querer, não tem direito a falar
nada, a escolher nada. Sob a tutela do adulto, que ao invés de lhe estimular a
autonomia, o crescimento, a vontade própria, só deseja dela uma única virtude:
obediência.
A escola é um local de formatação obrigatória das mentes para a
obediência em massa, para a sujeição do espírito a um programa medíocre,
empobrecedor, em que todas as crianças devem se comportar da mesma maneira,
aprendendo as mesmas coisas sem sentido para elas, da mesma forma, ao mesmo
tempo, com o mesmo resultado. O principal que se ensina na escola é a
competição entre os alunos, a necessidade de obedecer regras que não se sabe
quem fez e para quê, a atitude de silêncio e não questionamento. Os conteúdos
são esquecidos e passam. O comportamento imposto é para a vida.
As crianças são pessoas criativas, curiosas, sensíveis, amorosas, plenas
de senso de justiça. Após o massacre sofrido por anos na escola, elas se tornam
adolescentes apáticos, desinteressados, fechados e desiludidos com o aprender e
o viver. A escola, coadjuvada pelos pais, mata a pessoa gradativamente;
arranca-lhe toda capacidade perguntadeira, toda sensibilidade, e embota o
raciocínio com um amontoado de conteúdos sem nexo, sem finalidade, que ao final
do vestibular, a maioria de nós esqueceu completamente.
Esse processo tem começado cada vez mais cedo e cada vez de maneira mais
feroz. Tenho uma amiga muito querida que trabalha na educação infantil em
Santos e está enfrentando uma perseguição absurda porque se rebelou contra o
fato das professoras colocarem crianças de 2, 3, 4 anos de castigo, infringindo
aliás o Estatuto da Criança e do Adolescente – que proíbe que a criança sofra
humilhação e constrangimento. Dizem as professoras – com o apoio da direção e
da coordenação – que as crianças foram colocadas “para pensar”! Uma criança de
3 anos “pensando” num canto da sala!! E todo mundo acha que isso é normal, que
faz bem, que “impõe limites”. De início, já estamos transformando o ato da
reflexão num castigo. Segundo, estamos com isso arrancando a dignidade da
criança, que sempre tem de estar em posição de submissão e obediência ao
adulto. O caso dessa minha amiga foi levado para a Secretaria de Educação e ela
não foi apoiada. Foi posta para fora da sala de aula, por tirar uma criança do
castigo!
E o que querem as crianças? Correr, brincar, explorar, fazer fluir sua
intensa energia. E o que querem os professores, a escola, o governo, os pais?
Fazer com que elas fiquem quietinhas, caladinhas, em fila, obedientes, fazendo
atividades que os adultos planejaram, geralmente pobres e desinteressantes.
O que querem as crianças? Perguntar, saber, apalpar a vida, beber a
existência, abrir-se para o mundo… O que querem os adultos? Que elas se
enquadrem, quanto mais cedo melhor, num sistema de vida em que ficar calado,
não questionar, não criticar, não ser livre é a única opção.
A consequência disso já estamos assistindo: para submeter as novas
gerações, cada vez mais inquietas e não sujeitas a esse tipo de domesticação, é
preciso usar de meios mais poderosos de contenção – mais autoritarismo e agora
temos os remédios que ajudam a manter a criança submissa. Outra amiga minha,
que trabalha numa Ong, recebe encaminhamento de professoras da educação
infantil para médicos e psicólogos porque “elas só querem brincar”, “não param
quietas”… Que coisa! Crianças querendo brincar! Isso é um crime ou uma doença!
Temos de reprimi-las rapidamente!
No final da educação infantil, agora temos a provinha Brasil, mais um
instrumento de enquadramento da infância e um empenho em tornar já a educação
infantil um processo de escolarização massacrante, que antes só começava mais
fortemente aos 7 anos. Terem passado o primeiro ano para 6 anos é outro sintoma
de enquadramento cada vez mais precoce da infância nos parâmetros formatadores
da escola. Tenho um sobrinho de 6 anos que já está fazendo “provas”, para meu
desgosto absoluto.
Depois disso tudo, vemos alunos querendo bater em professores e as
pessoas se espantam, querem chamar a polícia (aliás já chamaram até para
crianças de 3 anos)… quando o que acontece e vai acontecer cada vez mais é que
este modelo de imposição promovido pela escola gera apenas duas atitudes
possíveis: apatia ou revolta. O estado que se estabelece na escola tradicional
é um estado de guerra permanente: os professores tentando conter, disciplinar,
submeter, obter estudo entediante e compulsório. Os alunos tentando escapar
pela divagação, pelo sonho, pela revolta – mais tarde, pode até ser pela droga
e pela violência (dependendo das condições familiares e sociais).
Quem assistiu ao maravilhoso filme “Educación Prohibida” poderá
constatar que crianças que vão a escolas livres, onde são respeitadas,
estimuladas, tratadas como seres pensantes e sensíveis e não como números
submissos, têm um desenvolvimento harmonioso, bonito, rápido. Não há violência,
guerra, escapismo, onde há liberdade, amor, escolha, estímulo. Onde educadores
e educandos têm cumplicidade, amizade, não há risco de violência, conflitos e
desrespeito. Eu trabalhei 15 anos em escolas particulares e públicas, em São
Paulo e no interior, com crianças desde 2 anos até adolescentes. Nunca um aluno
me desrespeitou. Só recebi entusiástico afeto, porque só semeei intenso afeto
por elas e respeito como pessoas com vontade e pensamento próprio. Nunca fiquei
nas salas dos professores, falando mal dos alunos e escolhendo alguns para
serem os bodes expiatórios da escola: os tais alunos-problemas, rotulados, com
diagnóstico inapelável de “sem solução”. Ao invés, esses foram sempre os que
mais me interessaram e com quem criei mais profundo vínculo. Porque geralmente
são os que mais se rebelam contra o sistema.
É claro que teremos assim professores frustrados, doentes, esgotados. É
um esforço hercúleo tentar submeter o tempo inteiro a energia vital, a ânsia de
autonomia das novas gerações e impor-lhes o remédio amargo de conteúdos
prontos, pasteurizados, desinteressantes, de uma lousa sem graça, de um prédio
cinza. (Outra amiga minha que dá aula numa escola de periferia em São Paulo no
Ensino Fundamental chorou ao me contar que um dia um aluno, que tinha um pai
preso, lhe disse olhando em volta da sala: “Prô, você já viu que a nossa escola
é igual a uma prisão?”)
Alguns professores se rebelam, querem outra coisa, mas são tragados pelo
sistema, como essa minha amiga acima. Outros sucumbem à depressão, têm que sair
fora, para poderem se tratar. Mas muitos estão convencidos de que deve ser
assim mesmo – são instrumentos inconscientes da opressão da infância e do
adolescente. Adotam o discurso do autoritarismo, sem perceber que também eles
se tornam uma peça de um sistema, em que eles próprios não têm querer, não tem
respeito, não são valorizados. Esses são aqueles que vão passar esses e-mails
irritantes, querendo criminalizar o “desrespeito” dos alunos aos professores ou
admirando o sistema oriental de “educação”, onde o indivíduo vale menos ainda e
está sendo treinado para a obediência absoluta ao sistema.
Enfim, estou aqui transbordando minha extrema indignação com o que a
sociedade, a escola, a família, fazem com as crianças. Elas precisam de espaço
vital, de espaço para brincarem, aprenderem por si mesmas, explorarem a vida!
Precisam de espaço mental, para pensarem, discordarem, perguntarem, serem elas
mesmas – cada uma com sua riqueza singular!
A criança é um ser subversivo ao sistema estabelecido. Ela questiona,
ela inquieta, ela pergunta, ela tem uma energia transbordante, ela não se
enquadra em parâmetros. Por isso, querem matá-la o quanto antes e transformá-la
num adultozinho bem comportado e estudioso, calado e obediente. Assim, será
mais fácil fazer desse ser humano uma peça descartável num sistema político,
social e econômico que não valoriza a pessoa, mas apenas o lucro, o poder e o
consumo.
Semear a
escola de lírios e jasmins,
Caramanchões
de flores,
Caminhos
perfumados...
E
árvores, muitas árvores,
Dessas
sob as quais podemos nos abrigar do sol,
Daquelas
que podemos subir e comer os frutos,
E ainda
as que podemos abraçar e sentir a seiva da vida.
Semear a
escola de crianças correndo
De
crianças sorrindo
De
crianças perguntadeiras, de olhos brilhantes,
De
crianças inventadeiras, dessas que inventam moda,
Dessas
que querem sempre mais,
Que nunca
param, que nunca se conformam....
Semear a
escola de pessoas felizes,
De
educadores amorosos, entusiastas, carismáticos,
Desses
que gostam de se sentar no chão,
De contar
histórias, de tocar violão,
De
brincar na terra e de plantar no coração.
Daqueles
que têm ainda nos olhos uma criança perguntadeira,
Daqueles
que querem saber de tudo e nunca acham que sabem tudo.
Quando a
escola for esse jardim,
Me chamem
para nela habitar
E o mundo
terá virado um lugar
Semeado
de paz
Dora Incontri
Que possamos,todos,pais,mestres e todos aqueles que lidem com crianças,ler o texto com muita atenção e começarmos a mudança em nós,pelo bem delas...
ResponderExcluirInteressante e curiosa essa abordagem.Parabéns!
ResponderExcluirObrigada Carlos!!!
ExcluirParabéns, Zilda, pela postagem, e parabéns, Dora, pela bela reflexão. Assino embaixo.
ResponderExcluirAbraços! :)
Obrigada Ana!!A Dora é sensasional..
ExcluirZilda, Dora Incontri é uma pessoa e personalidade bem interessante, sobre quem certamente procurarei saber mais. O texto aqui compartilhado prima por suas óbvias virtudes redacionais, tem uma certa beleza inerente, e é fortemente argumentativo. Suas ponderações são muito bem fundamentadas. Advoga ela uma libertação infantil talvez possível, talvez até viável. Só que assim como ainda estamos evidentemente longe de um mundo completamente desarmado e as guerras e seus efeitos indesejáveis ainda estão presentes em nossa realidade, também um ensino que só tenha conteúdos atraentes e interessantes para o educando e todos estes desejáveis etcéteras me parece algo bem distanciado do que realmente se vê como regra, na prática. Esforços no sentido de se reorientar todo o processo educacional estão de fato sendo empreendidos com variados graus de êxito no mundo inteiro, mas a verdade é que ainda falta muito para que isto atinja a todos.
ResponderExcluirCorretíssimo amigo.A Dora é de uma lucidez fascinante e tem vários livros em torno da pedagogia espírita.Sei que não é fácil,mas necessário que o sistema educacional mude,desde casa,pois a nova geração não aceita mais qualquer argumento;Digo isto já pelos filhos e agora pelos nove netos dos 4 aos 23...A de 4 tem argumento pra tudo e com uma lógica que espanta.Bjs na alma e mais vez,obrigada.
ExcluirUm excelente texto. O maior direito que devemos atribuir e respeitar, relativo às crianças, deverá ser o de permitir que sejam crianças. Bjs.
ResponderExcluirCriança é criança. Hoje o que vemos por aí são crianças adultas. Ao invés de usar sandalinhas estão usando salto alto, maquiagem, dançando Funk... e os pais achando graça de tudo e incentivando mesmo inconsciente, esquecendo que vão crescer e aí sim se tornarem adultos. Tudo tem seu tempo.
ResponderExcluirOlá Zilda, quanta verdade nesta mensagem da Dora! Linda postagem! Desejo que o domingo seja muito feliz! Abraços...
ResponderExcluirOlá, querida amiga Zilda
ResponderExcluirAproveito uma folguinha...
Liberemos a nossa criança interior e sejamos felizes!!!
Bjs de paz
Assino embaixo a carta de Dora Incontri! Os adultos são tiranos!! (rs*)
ResponderExcluirZilda, obrigada por divulgar o BookCrossing Blogueiro!! Vamos em frente!!
Boa semana!! Beijus,
Lucas Durand
ResponderExcluirExcelente reflexão sobre nossas crianças e a comodidade dos adultos em sempre desejar obediência, o que sempre prega as religiões, OBEDECER! Infelizmente somos frutos dessa terrível fòrmula de se comportar,OBEDIÊNCIA, HUMILDADE e SUBSERVIÊNCIA.
Grande abraço
Zilda, que texto maravilhoso! Temos que refletir sobre o caminho que a escola está percorrendo. Professores desestimulados, estressados, que esquecem-se que a criança é um ser pensante. E como diz o texto, só querem seres comportadinhos e caladinhos. Mas não se perguntam de como está o interior dessa criança. Muita paz!
ResponderExcluirComo sempre mais um texto importantebpara se refletir as crianças merecem respeito, beijo Lisette.
ResponderExcluirZilda o texto diz tudo o que penso.
ResponderExcluirAcho que é por essa "ditadura" das escolas que me afasto da sala de aula.
Estou em busca de um espaço para as crianças serem verdadeiras crianças.
Elas precisam ser respeitadas principalmente quanto as suas vontades, que é brincar.
E é no brincar onde elas aprendem.
Muito oportuno o post.
Um xero grande